Do Jornalismo à Advocacia: O Paradoxo Constitucional do Exame de Ordem §1º A Constituição Federal, em seu Art. 5º, XIII, garante o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais estabelecidas em lei. No entanto, a interpretação e aplicação desse preceito têm gerado divergências significativas, especialmente quando se comparam decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). A aparente inconsistência entre o julgamento do RE 511.961/SP, que declarou a inconstitucionalidade da exigência de diploma e exame pós-diploma para jornalistas, e o RE 603.538/MG, que manteve a constitucionalidade do Exame de Ordem para advogados, coloca em xeque a uniformidade na proteção do direito ao trabalho. Este texto se propõe a analisar essa dissimetria, defendendo a inconstitucionalidade do Exame de Ordem para advogados sob a perspectiva da competência legislativa e da razoabilidade das qualificações profissionais. Introdução §2º O Exame de Ordem, administrado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), funciona como a barreira final para o exercício da advocacia no país. Paradoxalmente, a decisão do STF que desobrigou a formação superior e qualquer exame pós-diploma para jornalistas, uma profissão igualmente relevante para a sociedade, convida a um questionamento aprofundado sobre a legitimidade e a constitucionalidade de tal exigência para os diplomados em Direito. O cerne da controvérsia reside na crucial necessidade de que o Artigo 5º, XIII, da Constituição Federal, não seja interpretado de forma isolada, assim como o próprio Artigo 220, § 1º, da CF, ao tratar da liberdade de informação jornalística, remete explicitamente a outros incisos do Art. 5º (IV, V, X, XIII e XIV). Este estudo abordará a aplicação dessa analogia e a necessidade premente de que o Exame de Ordem seja reavaliado com as mesmas cautelas e a mesma amplitude interpretativa utilizadas no julgamento da profissão de jornalista, focando na competência privativa da União para legislar sobre profissões e na desproporção da exigência em face de outras profissões com maior potencial de dano social. Desenvolvimento §3º Para que o público compreenda a profundidade da questão, é fundamental contextualizar os dois julgamentos do Supremo Tribunal Federal que geraram a controvérsia sobre a regulamentação do acesso às profissões. O Caso do Jornalismo: Liberdade Acima da Exigência §4º No julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 511.961/SP, o STF abordou a exigência de diploma de ensino superior para o exercício da profissão de jornalista. A Corte, interpretando o Art. 220 da Constituição Federal, que garante a plena liberdade de manifestação do pensamento, criação, expressão e informação, decidiu que qualquer lei que exigisse diploma universitário para jornalistas configuraria um embaraço indevido a essa liberdade fundamental. O entendimento foi além: considerou-se que não haveria necessidade de um exame pós-diploma, pois a qualificação para a profissão de jornalista não poderia ser tolhida por barreiras formais que restringissem o acesso à informação e à expressão. A reparação de eventuais danos causados pelo jornalista seria feita pela lei comum, e não por uma restrição prévia ao exercício da atividade. O Caso da Advocacia: A Manutenção de Uma Barreira de Acesso §5º Em contrapartida, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 603.538/MG, o STF analisou a constitucionalidade da exigência do Exame de Ordem para o exercício da advocacia. Diferentemente do que ocorreu com o jornalismo, a Suprema Corte entendeu por manter a constitucionalidade dessa exigência. O argumento central para a sua manutenção reside na peculiaridade da função social do advogado, que é indispensável à administração da justiça (Art. 133 da CF) e lida com direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Assim, a aprovação no Exame de Ordem foi considerada uma qualificação necessária para assegurar a adequação técnica e ética dos profissionais, visando proteger o jurisdicionado. A Contradição no Tratamento de Profissões Essenciais §6º É neste ponto que se revela uma clara contradição ou, no mínimo, uma profunda divergência de entendimento do STF sobre um mesmo assunto fundamental: o acesso a profissões regulamentadas à luz do Art. 5º, XIII, da CF. Ambas as profissões — jornalismo e advocacia — são cruciais para a democracia e para o funcionamento da sociedade. No entanto, foram tratadas com critérios interpretativos distintos para a aplicação das "qualificações profissionais que a lei estabelecer". §7º Se para o jornalismo, a liberdade de informação e a possibilidade de reparação de danos foram suficientes para derrubar a barreira do diploma e do exame pós-diploma, por que para a advocacia, que também possui mecanismos de responsabilização e cujos danos (materiais ou morais) são igualmente passíveis de ressarcimento judicial, a barreira do Exame de Ordem foi mantida? Ambas as profissões, embora cruciais, possuem um potencial ofensivo à sociedade que, em caso de dano, pode ser ressarcido na forma da lei. Ou seja, a reparação civil é um mecanismo eficaz de controle e responsabilização para ambas. §8º É importante esclarecer que o inciso XIII do Art. 5º da Constituição Federal refere-se exclusivamente às profissões liberais. A disciplina de ingresso e exercício de empregos públicos, por sua vez, é regida pelo Art. 37 da CF, com suas próprias especificidades e requisitos, não se confundindo com a regulamentação das profissões autônomas ou ligadas a entidades de classe. Assim, a presente análise foca na aplicação das qualificações profissionais no contexto das profissões liberais. O Potencial Ofensivo e a Natureza do Exame Pós-Diploma §9º A incoerência se acentua quando comparamos a advocacia com profissões que possuem um potencial ofensivo significativamente maior à sociedade, como a medicina e a engenharia. Nesses campos, cujos erros podem implicar diretamente em risco à vida, saúde ou segurança estrutural, seus respectivos conselhos profissionais não exigem um exame pós-diploma para o exercício básico e generalista da profissão. Exames são, sim, exigidos, mas para fins de especialização (como residências médicas ou certificações em engenharia específica), e não como uma barreira de entrada para a atuação profissional inicial. §10º Em contraste, o Exame de Ordem da OAB assemelha-se mais a um concurso público do que a um exame de qualificação profissional pós-graduação. Ele visa condicionar o acesso à profissão de advogado sob o pretexto de uma aprovação que, no entanto, não confere ao diplomado em Direito qualquer especialização formal. O advogado, mesmo após a aprovação no Exame de Ordem, permanece apto a atuar como um "clínico geral" do Direito, assim como um médico recém-formado. Essa distinção ressalta o caráter extemporâneo e a desproporcionalidade da exigência do Exame de Ordem, que não se alinha à finalidade de conferir especialização, mas sim de impor uma qualificação adicional para o exercício profissional pleno, já conferido pelo diploma universitário. Fundamentos Jurídicos da Inconstitucionalidade e o Vício de Origem §11º A exigência do Exame de Ordem encontra óbices substanciais na competência legislativa constitucionalmente estabelecida. A Constituição Federal é clara ao atribuir privativamente à União a competência para legislar sobre direito do trabalho e condições para o exercício de profissões (Art. 22, I e XVI). Além disso, a organização do ensino e a formação de profissionais também são matérias de competência da União (Art. 22, XXIV, combinado com Art. 205, Art. 209, Art. 84, III, da CF, e Art. 2º, Art. 43, II, e Art. 48 da Lei nº 9.394/1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB). A União sempre foi e continua sendo a "mãe" de todas as profissões liberais, a única com prerrogativa constitucional para defini-las e regulamentá-las. §12º Nesse sentido, verifica-se que nenhum Conselho Profissional recebeu delegação expressa da União para avaliar e qualificar o ensino profissionalizante, especialmente por meio de exames pós-diploma. A única exceção prevista no Art. 22 da CF para delegação de competência legislativa aos Estados é por meio de lei complementar, o que não é o caso da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB), que institui o Exame de Ordem. §13º É crucial enfatizar que, embora o site da Câmara dos Deputados indique o saudoso Deputado Federal Ulysses Guimarães como autor do Projeto de Lei 2938/1992, que deu origem à Lei 8.906/1994, o próprio site contém prova irrefutável de que o verdadeiro autor do projeto foi o Conselho Federal da OAB, conforme a respectiva justificação do PL. Essa constatação configura um manifesto vício de iniciativa, pois a proposta de lei que estabelece condições para o exercício de profissão deveria partir do Presidente da República, conforme o Art. 84, III, da CF, e não de uma entidade de classe. Este cenário revela uma dissonância fundamental com o Princípio da Supremacia Constitucional, segundo o qual nenhuma norma ou ato pode se sobrepor aos preceitos da Carta Magna. A validade e a legitimidade de qualquer exigência profissional devem emanar diretamente da Constituição ou de lei por ela expressamente autorizada e que observe seu devido processo legislativo. Ineficácia Prática e Desvalorização Educacional §14º Embora a OAB frequentemente argumente que o Exame de Ordem é essencial para proteger a sociedade e garantir a qualidade dos serviços advocatícios, a realidade prática frequentemente desmente essa premissa. As mídias nacionais, de forma recorrente, noticiam centenas de casos de advogados que, mesmo aprovados no Exame de Ordem, violaram e continuam violando princípios éticos e o próprio ordenamento jurídico. Tais situações demonstram que a aprovação em um exame pós-diploma não é garantia de conduta ilibada ou de efetiva proteção social, tampouco impede a má prática profissional. §15º Mais ainda, a própria existência do Exame de Ordem, ou de qualquer exame pós-diploma para o exercício de uma profissão regulamentada, menospreza e desvaloriza o trabalho das Instituições de Ensino Superior (IES) e do Ministério da Educação (MEC). O reconhecimento dos diplomas, a avaliação dos cursos e a fiscalização da qualidade do ensino jurídico já são atribuições do MEC, exercidas por meio de rigorosos processos de credenciamento e avaliação. O Exame de Ordem não possui o poder de "revalidar" diplomas de postulantes; ele não qualifica o profissional, pois a qualificação é conferida pela formação superior reconhecida pelo MEC. Ao impor uma nova barreira, o Exame de Ordem desrespeita a autonomia universitária e a capacidade das IES, em conjunto com o MEC, de formarem profissionais aptos e qualificados. Essa sobreposição de competências, além de criar um entrave burocrático, desconsidera as regras constitucionais que atribuem à União a competência para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional, o que, por si só, configura um forte argumento de inconstitucionalidade. Conclusão §16º A análise do panorama constitucional e das decisões do STF sobre a qualificação profissional de jornalistas e advogados revela uma incoerência insustentável, especialmente quando se considera que o Art. 5º, XIII, da CF, não pode ser interpretado isoladamente, mas em harmonia com outros princípios constitucionais, da mesma forma que o Art. 220, § 1º, da CF. Se a liberdade de imprensa, expressa no Art. 220 da CF, justificou a dispensa de diploma e exame pós-diploma para jornalistas, a liberdade de trabalho garantida pelo Art. 5º, XIII, da CF, e o acesso à justiça, deveriam fundamentar uma revisão da exigência do Exame de Ordem para advogados com as mesmas cautelas. Tal exigência não se justifica como exame de especialização e se mostra desproporcional frente a profissões com maior impacto potencial na segurança social, que não impõem barreiras semelhantes para o exercício básico. §17º A ausência de delegação constitucional expressa à OAB para avaliar o ensino superior, a falta de conformidade da Lei nº 8.906/1994 com as normas de competência legislativa da União (especialmente o vício de iniciativa da OAB na autoria do projeto de lei) reforçam a tese de sua inconstitucionalidade, em clara afronta ao Princípio da Supremacia Constitucional. A imposição do Exame de Ordem, portanto, configura uma restrição desnecessária e desprovida de sólido amparo constitucional, gerando uma barreira injustificada ao livre exercício profissional. A ineficácia prática do exame na proteção social, demonstrada pelos casos de violação ética de advogados aprovados, e o desrespeito às instituições de ensino e ao MEC (que já conferem a devida qualificação pelo diploma) também validam o argumento de sua inconstitucionalidade. Encerramento §18º Diante do exposto, torna-se imperativa a reavaliação da constitucionalidade do Exame de Ordem para advogados. A busca por um sistema jurídico coerente e justo demanda que as qualificações profissionais sejam estabelecidas em lei federal de iniciativa adequada e não por meio de delegações implícitas a entidades de classe. A harmonia entre os princípios constitucionais da liberdade de trabalho, da livre manifestação do pensamento e da competência legislativa da União é essencial para garantir que o acesso às profissões no Brasil esteja em plena conformidade com a Carta Magna, sob a égide de sua supremacia. Resumo Consolidado §19º O presente texto aborda a inconstitucionalidade do Exame de Ordem para advogados, destacando o paradoxo interpretativo do Supremo Tribunal Federal (STF) ao comparar a dispensa de diploma e exame pós-diploma para jornalistas (RE 511.961/SP) com a manutenção da exigência para a advocacia (RE 603.538/MG). Argumenta-se que o Art. 5º, XIII, da Constituição Federal não pode ser interpretado isoladamente, e que o Exame de Ordem, funcionando como um concurso público disfarçado, desconsidera a formação universitária e a fiscalização do MEC. Crucialmente, a Lei 8.906/1994 apresenta vício de origem, pois o Conselho Federal da OAB foi o verdadeiro autor do Projeto de Lei 2938/1992, violando a competência privativa da União (a "mãe" das profissões liberais) e o Princípio da Supremacia Constitucional. Soma-se a isso a ineficácia prática do exame na proteção social, evidenciada por inúmeros casos de advogados que, mesmo aprovados, violam a ética e a lei, além de menosprezar o trabalho das Instituições de Ensino Superior e do Ministério da Educação. Assim, defende-se a urgente reavaliação do Exame de Ordem para garantir coerência jurídica e respeito ao direito fundamental ao trabalho no Brasil. RJ250620254 LacerdaJJ:: ANJUR-CPPEO. Contatos: Messenger E-mail: cppeo.artigo5xiiicf@gmail.com

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